Nos últimos dias do mês de julho /2020 episódios de incêndios novamente tomaram conta do cenário cultural. Estátuas de personalidades controversas e equipamentos culturais de grande valor material e imaterial foram tomados pelo fogo. A estátua de Borba Gato e a Cinemateca Brasileira estamparam os feeds de notícias e a polarização de opiniões se digladiaram nas redes. Acervos destruídos e violações de direitos trouxeram à tona questões que se remetem ao próprio conceito de cultura.
Partindo do conceito de cultura como uma área de desenvolvimento estratégico com políticas públicas e ações econômicas envolvidas, no Brasil, apesar desta cultura movimentar milhões em impostos e postos de trabalho, o descaso com a pasta do setor já é algo recorrente e o sucateamento é visto como um projeto, principalmente em governos com orientações neoliberais.
A cultura muitas vezes é vista como supérflua e ideológica, algo que se reflete em ações sem continuidade, e, até mesmo no sucateamento material dos equipamentos culturais. A ocorrência de incêndios em instituições culturais já se tornou algo crônico e espaços como o MAM – Museu de Arte Moderna – RJ, o Memorial da América Latina, Cinemateca, Palácio das Artes, Museu da Língua Portuguesa e nosso Museu Nacional, um dos maiores de história natural do mundo, foram vítimas de chamas. Prejuízo incalculável para a humanidade e para os cofres públicos, pois em casos como o do MAM, nem mesmo as apólices de seguro conseguiram arcar com os prejuízos da perda de obras blue chips (obras de grande valor de mercado) como de Picasso, Pollock e outros grandes nomes.
Cultura é algo complexo, com várias definições e se há um fator que podemos pensar é que estes conceitos estão intrinsecamente ligados aos grupos que estão no poder. A cultura para Franz Post e seus discípulos era algo plural, ligado às tribos, algo dinâmico, uma cultura de culturas já para a visão etnocêntrica, cultura era acima de tudo o modo eurocêntrico de vida, o que não se encaixava nos moldes era colonizado, catequizado ou dizimado. Partindo destes conceitos de relativismo cultural x etnocentrismo, podemos considerar o ataque a personalidades racistas, violadoras de direitos como Borba Gato, entre outras imagens de violadores atacadas pelo mundo como gritos de luta contra as atrocidades que o colonialismo imperialista e escravocrata criou.
Um projeto de lei assinado pelas deputadas Taliria Petrone e Áurea Carolina, intitulado “Na minha rua não” apresenta a proposta de remover os monumentos criados em homenagem às personalidades controversas (racistas, genocidas, violadoras) para museus com o intuito de incentivar o pensamento crítico na sociedade. A ação busca reparar os danos causados à determinadas minorias oprimidas historicamente.
Paradoxalmente quando pensamos na situação dos aparelhos culturais no Brasil, assim como as políticas para a área da cultura, podemos chegar a conclusão que nas ruas ou nos museus o destino destas estátuas poderá ser o mesmo de arder em chamas. Enquanto ecoam os versos de Djonga gritando “fogo nos racistas”, sorrateiramente o descaso entoa o “fogo na cultura”, nas manifestações, instituições e agentes culturais. O problema é bem mais complexo, portanto o abandono do setor é derivado do desprezo pela diversidade e se torna uma performance obscura da elite do atraso, ao ignorar tudo que representa os valores coletivos de nosso povo, como a arte e as manifestações culturais.
Com base nestes fatos, respeitar direitos é preservar nossa memória e fazer florescer novos pensamentos. Cuidar da cultura e da arte é cuidar do povo, é direito garantido mas que é constantemente violado. Visões etnocêntricas e reacionárias estão latentes com a ascensão da extrema direita pelo mundo e em locais como em nosso país onde a cultura e a arte lutam com dificuldade para sobreviver estas discussões se fazem de extrema importância.